quinta-feira, 11 de junho de 2015

Curso de extensão Escola No Ar, na Praia do Sono - Paraty/RJ

Entre os dias 17 e 23 de maio, atravessamos o Espírito Santo rumo à Reserva Ecológica da Juatinga, Paraty-RJ, para ministrar o curso de extensão Escola no Ar: capacitação em rádio educativa com focos em Língua Portuguesa e Literatura - mais uma ação do projeto Programa Vice Verso, Universidade Federal do Espírito Santo. Na paradisíaca Praia do Sono, conhecemos o músico Zaqueu, um apaixonado por rádio que conduz sozinho 18 horas de programação, da música evangélica de raiz à MPB. A Caiçara FM 88,3 é o orgulho de uma comunidade composta por pouco mais de 300 habitantes, mas suas ondas chegam ainda mais longe integrando povos guardiões da Mata Atlântica. 


"Estamos em pleno mar": Karina Caetano e Jamilla Ghil chegando à Praia do Sono

Nessa vivência com os Caiçaras, incentivamos os alunos do ensino fundamental e a professora Beth, da Escola Municipal Martim de Sá, a se tornarem produtores de conteúdos culturais para a Rádio Caiçara. O curso motivou o desenvolvimento de performances para o rádio e a produção de conteúdos que somassem à programação já desenvolvida pelo Zaqueu. Privilegiando aspectos que valorizassem as manifestações culturais da comunidade e seu entorno, formulamos coletivamente o conceito e a identidade sonora do programete Cultura Caiçara: saberes, sabores e tradição do nosso povo; além de produzir vinhetas e spots com as vozes dos estudantes. Coincidência ou não, nossa visita se deu exatamente na semana do aniversário de 4 anos da Çaiçara FM - ver toda a comunidade engajada nos preparativos da festa foi um presente! Esperamos que o saber construído aos longo desses dias tenha somado força às práticas de organização social dessas comunidades tradicionais em entorno do rádio.


A Chegada

Panorâmica da Praia do Sono - Paraty/RJ

Chegamos à Praia do Sono, por  escolhermos o caminho do mar em lugar da trilha,  entramos no condomínio privado mais caro do Brasil. O destino de uma gente muito simples foi atravessado pelo fetiche do luxo, da ostentação, por mansões, um campo de Golfe e um heliporto. Em Paraty, as elites colonizam o paraíso e pouco a pouco "expulsam" os Caiçaras de seus territórios originais, propondo um modelo de desenvolvido perverso e excludente. A Praia do Sono é um dos poucos refúgios em que ainda se resiste. 

Mas, quem são os Caiçaras? Uma mistura do europeu com negros e indígenas? Conhecemos uma gente com  modo próprio de vida coletiva, cujo trabalho e pensamento obedecem ao ritmo do mar;  pessoas ligadas por gerações que dele tiram o sustento, seja pelo turismo ou pela pesca.

A orla aponta no horizonte, da areia Jad nos espera com um abraço receptivo. Presidente da associação de moradores da Praia do Sono, é homem de luta qual seus conterrâneos. A comunidade é pacífica e sem  registro de violência, senão simbólica. O conflito é político e se dá com os milionários do condomínio, que volta e meia criam embargos na travessia. É preciso passar dentro do condomínio para embarcar rumo ao Sono, é preciso passar dentro do condomínio para que o lixo da comunidade seja coletado, é preciso passar dentro do condomínio para vender os peixes...Daí vocês já imaginam a bomba relógio, sobretudo no verão. Meia hora de prosa  e já sabemos que há  muita lula por aqui.


Jamilla Ghil, Jad (presidente da Associação de Moradores) e Karina Caetano

Almoçamos a comida preparada por Dona Iracema, mãe do Jad. Deixamos os equipamentos numa antiga igreja, temporariamente nosso lar,  e fomos conhecer a Rádio Caiçara FM 88,3. Trata-se de uma pequena estação conduzida pelo Zaqueu, em sua própria casa, num quartinho com  uma cama de solteiro que lhe serve de cadeira, transmissor, mesa de som, microfone com pedestal, fones e outras relíquias. Na entrada da sala,  estava ele sentado no chão fazendo a escuta das músicas e montando, de maneira bem artesanal, parte das 18h de programação diária. Utilizando um aparelho de som com duas entradas para pendrive, escolhe as músicas e passa de um aparelho pro outro. Talvez o trabalho fosse menor, caso o único computador da casa fosse adaptado à sua natureza: Zaqueu é cego.
Zaqueu, o radialista, Jamilla Ghil e Karina Caetano

A programação começa às 6h com a Manhã Sertaneja, depois uma programação evangélica, segue a tarde ao som da MPB, termina com as  Melhores românticas da noite e no final de semana ainda tem  Saudades da Jovem Guarda. O horário evangélico é o  de maior audiência, e de muitos abraços às comunidades da Península da Juatinga. Além do mais,  nesse horário são passados os principais informativos, como a vinda ou não do médico, avisos da associação de moradores e até pouco tempo anunciavam-se os dias da coleta de lixo. O papel social dessa rádio é de emocionar!

 As peças publicitárias  arrancam rizadas dos ouvintes  e do próprio Zaqueu, que cria vozes, improvisa com um gravadorzinho de mão e assim cativa um público fiel há 4 anos. Felizmente,  tivemos a sorte de chegar exatamente na semana do aniversário da Caiçara FM, e isso  fez aumentar ainda mais nosso desejo de colaborar.



A escola

No dia 19/05, conhecemos a professora Beth e a coordenadora Érica Duval,  após chegarem em um barco financiado pela prefeitura. A Escola Municipal Martim de Sá oferece o Ensino Fundamental em classes multisseriadas; o turno matutino recebe alunos do 3º ao 5º ano e, no vespertino, crianças do 1º e 2 º anos da alfabetização.  O espaço físico conta com 01 sala de aula, 01 pequena biblioteca, 01 sala auxiliar com  TV e DVD, refeitório e o espaço externo é o próprio centro da vila e a praia. Ao que tudo indica,  é um lugar onde as crianças ainda podem ser livres.

Os estudantes aguardavam tranquilos a chegada da professora. No dia anterior, não houve aula -  fato noticiado na Rádio Caiçara, inclusive. A coordenadora foi bastante solícita e nos disse que vem uma vez por semana (nos outros dias acompanha outras três escolas da costa). Ela ainda não sabia muito sobre o que era nosso projeto, o que não chegou a ser um problema, visto que a comunicação no Sono, em muitos aspectos, é difícil.

Há trinta e um alunos matriculados sob a responsabilidade da prefeitura. No turno noturno, funciona o Projeto Azul Marinho, que oferece complemento do ensino fundamental, 6º ao 9º ano, com duração de dois anos. Trata-se de uma parceria entre a Rede Globo e a Prefeitura de Paraty. Porém, a formação desse segmento não é certificada e não se sabe da continuidade da formação no Ensino Fundamental II, após o fim do projeto.  No Sono não é oferecida nenhuma modalidade de ensino que atenda aos jovens e adultos, nem ensino médio - o que leva muitas pessoas a abandonar os estudos ou emigrar para Paraty.

Embora o descaso do poder público com a educação local, podemos afirmar que a Martim de Sá é reflexo da própria comunidade: é uma das escolas mais fortes da região porque ao seu redor estão reunidas lideranças articuladas que incentivam a permanência dos alunos na escola, bem como a inserção de projetos como o nosso e a melhoria da escola. E não para por aí, a escola é o lugar de articulação e reuniões dos moradores e atualmente há uma  briga envolvendo o  Ministério Público para regulamentar o Fundamental II e implantar o Ensino Médio.

Apesar de seu território circunscrevê-la como escola do campo, e de ser frequentada por Caiçaras, o Estado não oferece políticas suficientes para atender a uma instituição de tal natureza. Ainda não  possui Projeto Político Pedagógico próprio, mas o corpo docente e os agentes sociais  estão empenhados na construção de outro modelo de Educação ali. 

A fim de fortalecer os saberes  tradicionais, destacam-se as demandas por uma Educação que mantenha viva  a cultura e memória desse povo. Nesse sentido, o fomento de uma estação comunitária, bem como a propagação dos conhecimentos sobre rádio e o  compartilhamento de saberes construídos desde a perspectiva das  crianças, fortalece a luta pela garantia de direitos e  pode manter viva a memória cultural dos povos tradicionais.

Os aspectos complicadores diagnosticados foram as dificuldades com a alfabetização, as repetidas faltas das crianças e o pouco interesse dos pais em relação ao colégio. Segundo a educadora Érica Durval, esses problemas se apresentam diante da pouca perspectiva de futuro ou da ideia de que para desenvolver as principais atividades da região, o turismo e a pesca, saberes passados de pai para filho, não há necessidade de frequentá-la assiduamente. 

No fim da tarde, encontramos a professora trabalhando com os pequenos. Disse-nos de sua antiga vontade de unir os trabalhos em sala à abrangência da Rádio Caiçara, mas lhe faltava conhecimentos técnicos. Explicamos que pensávamos criar junto com os alunos a estrutura básica para  pequenos programas irem ao ar e que, a partir disso, pudessem se organizar. Apesar da oficina ter sido elaborada para crianças a partir de 10 anos, ela nos pediu que os menores também participassem. Saímos animadas da escola, pensando no início dos trabalhos.


Primeiro módulo do curso


                                            Jamilla Ghil e Karina Caetano preparando o primeiro módulo

As crianças nos esperavam em frente à escola. Entramos na biblioteca e elas nos seguiram um tanto desconfiadas, daí começamos a montar os equipamentos e a interagir. Nos apresentamos e, diante de toda a timidez delas, usamos uma ferramenta poderosa para lidar com crianças: o riso. Falamos sobre aquecimento vocal e fizemos juntos alguns exercícios. Depois de uns gritos para mostrar a respiração diafragmática (mas que acabaram feitos no gogó mesmo), demos início à dinâmica de apresentação no rádio. Como eles estavam demasiado retraídos, fizemos da apresentação uma breve entrevista com cada um. À medida que íamos trabalhando, mais as crianças menores se achegavam  à porta para saber o que acontecia. Pouco a pouco os que estavam na sala foram ficando mais à vontade.


  Aos poucos, a dinâmica de apresentação foi soltando os alunos

Apresentamos o desafio de leitura da canção Ode aos Ratos, de Chico Buarque. Foi interessante observar como todos estavam concentrados  treinando a dicção dos "erres". Aliás, todo mundo quis ver o texto, mas poucos se arriscam a ler em voz alta. Então, com o intuito de melhorar a performance oral e estimulá-los a refletir sobre a locução, elencamos algumas Dicas para falar no rádio. Em seguida, iniciamos a gravação  da decantação (arte de declamar canções)  da música do Chico.  Essa experiência sempre aproxima as crianças das práticas radiofônicas, como por exemplo a percepção da importância de se fazer silêncio no estúdio e da escuta crítica daquilo que é produzido, aspectos para os quais chamamos atenção.

Tínhamos ressalvas sobre o estágio de alfabetização das   crianças, a impressão foi de que  a maioria sabia ler,   mas apresentavam alguma resistência na hora de escrever o nome completo.  Ao fim do encontro, separamos as crianças em grupos com diferentes temáticas para o programete Cultura Caiçara.   A ideia era criar um produto sobre cultura e diversidade com duração de 1 minuto. Como tarefa de casa, sugerimos que pesquisassem possíveis assuntos sobre os temas que eles mesmos elegeram como importantes: espécies de peixes, cuidados com a água, remédios caseiros e prática de bordado.  


Segundo módulo do curso

Voltamos pela manhã, montamos os equipamentos e esperamos as crianças. Mas, para nossa surpresa, apenas três compareceram. Diz-se que essa ausência no contraturno é muito comum por aqui.

Iniciamos a oficina ainda afinando o funcionamento dos equipamentos de captação de áudio. Fizemos o aquecimento de voz, escutamos e identificamos alguns efeitos sonoros e depois gravamos a decantação de Ode aos ratos como forma de sensibilização para a performance no rádio. 



                       Alunos da alfabetização, Tainá, do Ponto de Cultura Caiçara, e a professora Beth

Na hora do recreio da turma de alfabetização, alguns deles se aproximaram  curiosos e interessados. Pedimos à professora Beth (super engajada em fazer a diferença) para que participassem um pouco da oficina.  A sala ficou lotada, para nossa alegria! Exibimos o vídeo de Os Trapalhões fazendo uma rádio novela,  a qual adoraram e compreenderam o humor.




Hora da gravação, tudo o que tínhamos combinado no dia anterior deu errado. Ninguém levou a pesquisa, até porque apenas 3 alunos desse dia participaram deste encontro \O/ \0/ E agora? O que gravar com elas? 

Como as meninas do Ponto de Cultura Caiçara, Julia Grillo e e Taina Mie, estavam lá acompanhadas da professora, as 3 começaram a sugerir ações. Assim nasceu a ideia de aproveitar as produções textuais já realizadas pelos alunos para a gravação do programete. 

Gravamos vinhetas, dicas de meio ambiente, curiosidades, paródias e poemas criados pelas crianças. Assim nasceu o Cultura Caiçara: sabores, sabores e tradição do nosso povo.







3º Módulo do curso

Este foi mais um dia tentando encontrar o Zaqueu para gravar algumas peças sonoras para a Caiçara FM , porém esteve muito ocupado com os preparativos do aniversário da rádio. É inspiradora sua força e sua proatividade. 

Fomos à escola pela manhã gravar com as crianças que faltaram no primeiro dia da oficina, desejávamos recolher um pouco mais de material. Na biblioteca, Júlia e Taina, do Ponto de Cultura Caiçara, faziam reunião com alguns moradores, os quais são seus articuladores culturais em formação. Uma jovem com um bebê recém-nascido questionava as mudanças na praia e as necessidade de preservação de alguns hábitos antigos, como o direito de aprender a nadar na barra. 

Enquanto arrumávamos os equipamentos, Julia Grillo nos avisou que as crianças não queriam gravar, pois estavam muito tímidas. Sugerimos realizar apenas uma dinâmica  de escuta, sem obrigação de registro. 

Com muito custo, os poucos presentes na escola entraram na sala. Fizemos a escuta de alguns efeitos sonoros e brincamos de identificá-los.  Depois, escutamos a gravação das vozes dos alunos feita na oficina passada e, por último, a composição delas nas vinhetas. Isso mudou o clima da aula, o que animou a turma para mais gravação.
A cantoria ficou afinada
Finalizado o encontro, iniciamos a gravação com o Tiago, um jovem artista plástico  engajado na implantação do Ponto de Cultura na Praia do Sono e que emprestou sua voz para a abertura do Cultura Caiçara.

Foi uma surpresa boa! Conseguimos dar um passo rumo à inserção de várias vozes, diga-se, dos próprios Caiçaras na programação da rádio deles. Aliás, isso também era uma demanda  do Zaqueu. Alegria à parte foi encontrar o aluno João  todo contente por  ter escutado sua voz ser veiculada na vinheta da rádio pela manhã.  Seus familiares também ficaram bem orgulhosos, o que nos fez acreditar ainda mais no poder aglutinador do rádio.




O aniversário da Rádio

Às 6 da manhã já estávamos na casa do Zaqueu para testar o volume das vinhetas numa veiculação ao vivo.  Ele gostou do resultado e já soltou o novo material naquele instante e durante as comemorações do aniversário, à beira mar. 

Zaqueu discotecando na Praia do Sono


                                       Zaqueu no aniversário de 4 anos da rádio Caiçara FM

Foi emocionante ver toda a comunidade unida em torno da Rádio Caiçara. As mulheres empenhadas na feitura do estrogonofe de frango e do bolo, enquanto a TV Futura registrava, no centro da vila,  Zaqueu com uma mesa e uma caixa de som ao vivo pra festa. Pessoas de localidades vizinhas chegaram de barco, todos comeram e compartilharam aquele momento de felicidade pelos 4 anos de aniversário. 

À tarde, gravamos mais poemas do Almir, o poeta do Sono. Uma figura muito simpática que acumula as habilidades de agricultor, massoterapeuta, capelão e que em breve começará  o curso de Pedagogia do Campo. 



Ainda rolou um recado do ex-presidente Lula pros Caiçaras, gravado pelo querido Jad,  escutem só:



Os frutos

A surpresa dessa viagem foi para ambos os lados. Tínhamos um plano em mãos cujo foco recaía sobre a leitura literária, mas chegando lá tivemos que adaptá-lo às demandas daquela realidade: reduzir o curso, trabalhar com diferentes faixas etárias, tentar conciliar a agenda apartetada do Zaqueu com nossas aspirações radiofônicas. Além do trabalho duro e apaixonado de criação e edição de áudio, ainda que falho.

Na mesma direção, Jad fez questão de enfatizar o quanto nossa ação era importante para o fortalecimento da rádio e da comunidade. Esse fato nos fez acreditar ainda mais que veicular as vozes dos próprios moradores do Sono, sobretudo dos poetas,  pode fortalecer ainda mais  a sensação de pertencimento àquele lugar, e de carinho pela Caiçara FM. Trabalhamos com muita alegria e esperamos que as pessoas se apropriem dela dia a dia e deem continuidade ao Cultura Caiçara, ou criem outros programas, afinal a  Caiçara FM é um patrimônio cultura da Praia do Sono.

Seguem os frutos:























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