Entre os dias 17 e 23 de maio, atravessamos o Espírito Santo rumo à Reserva Ecológica da Juatinga, Paraty-RJ,
para ministrar o curso de extensão Escola no Ar: capacitação em rádio educativa
com focos em Língua Portuguesa e Literatura - mais uma ação do projeto Programa Vice Verso, Universidade Federal do Espírito Santo. Na paradisíaca
Praia do Sono, conhecemos o músico Zaqueu, um apaixonado por rádio que conduz
sozinho 18 horas de programação, da música evangélica de raiz à MPB. A Caiçara
FM 88,3 é o orgulho de uma comunidade composta por pouco mais de 300
habitantes, mas suas ondas chegam ainda mais longe integrando povos guardiões
da Mata Atlântica.
"Estamos em pleno mar": Karina Caetano e Jamilla Ghil chegando à Praia do Sono
Nessa vivência com os Caiçaras, incentivamos os alunos do ensino fundamental e a professora Beth, da
Escola Municipal Martim de Sá, a se tornarem produtores de conteúdos culturais para a Rádio Caiçara. O curso motivou o desenvolvimento de performances para o rádio e a produção de
conteúdos que somassem à programação já desenvolvida pelo Zaqueu. Privilegiando
aspectos que valorizassem as manifestações culturais da comunidade e seu entorno,
formulamos coletivamente o conceito e a identidade sonora do programete Cultura
Caiçara: saberes, sabores e tradição do nosso povo; além de produzir vinhetas e spots com as vozes dos estudantes. Coincidência ou não, nossa visita se deu exatamente na semana do aniversário de 4 anos da Çaiçara FM - ver toda a comunidade engajada nos preparativos da festa foi um presente!
Esperamos que o saber construído aos longo desses dias tenha somado força às práticas de organização social dessas comunidades tradicionais em entorno do rádio.
A Chegada
Panorâmica da Praia do Sono - Paraty/RJ
Chegamos à Praia do Sono, por
escolhermos o caminho do mar em lugar da trilha, entramos no condomínio
privado mais caro do Brasil. O destino de uma gente muito simples foi
atravessado pelo fetiche do luxo, da ostentação, por mansões, um campo de Golfe e um
heliporto. Em Paraty, as elites colonizam o paraíso e pouco a pouco
"expulsam" os Caiçaras de seus territórios originais, propondo
um modelo de desenvolvido perverso e excludente. A Praia do Sono é um dos
poucos refúgios em que ainda se resiste.
Mas, quem são os Caiçaras? Uma
mistura do europeu com negros e indígenas? Conhecemos uma gente com modo
próprio de vida coletiva, cujo trabalho e pensamento obedecem ao ritmo do mar; pessoas ligadas por
gerações que dele tiram o sustento, seja pelo turismo ou pela pesca.
A orla aponta no horizonte, da
areia Jad nos espera com um abraço receptivo. Presidente da associação de
moradores da Praia do Sono, é homem de luta qual seus conterrâneos. A comunidade é
pacífica e sem registro de violência, senão simbólica. O
conflito é político e se dá com os milionários do condomínio, que volta e
meia criam embargos na travessia. É preciso passar dentro do condomínio para
embarcar rumo ao Sono, é preciso passar dentro do condomínio para que o lixo da
comunidade seja coletado, é preciso passar dentro do condomínio para vender os
peixes...Daí vocês já imaginam a bomba relógio, sobretudo no verão. Meia hora
de prosa e já sabemos que há muita lula por aqui.
Almoçamos a comida preparada por
Dona Iracema, mãe do Jad. Deixamos os equipamentos numa antiga igreja,
temporariamente nosso lar, e fomos conhecer a Rádio Caiçara FM 88,3. Trata-se de uma pequena estação conduzida pelo Zaqueu, em sua própria casa, num quartinho com uma cama de
solteiro que lhe serve de cadeira, transmissor, mesa de som, microfone com
pedestal, fones e outras relíquias. Na entrada da sala, estava ele sentado no chão fazendo a escuta das músicas e montando, de maneira bem
artesanal, parte das 18h de programação diária. Utilizando um aparelho
de som com duas entradas para pendrive, escolhe as músicas e passa de
um aparelho pro outro. Talvez o trabalho fosse menor, caso o único computador da casa fosse
adaptado à sua natureza: Zaqueu é cego.
Zaqueu, o radialista, Jamilla Ghil e Karina Caetano
A programação começa às 6h
com a Manhã Sertaneja, depois uma programação evangélica, segue a tarde ao som da MPB, termina
com as Melhores românticas da
noite e no final de semana ainda tem Saudades da Jovem
Guarda. O horário evangélico é o de maior
audiência, e de muitos abraços às comunidades da Península da Juatinga. Além
do mais, nesse horário são passados os principais informativos, como a vinda ou não do médico, avisos da associação de moradores e
até pouco tempo anunciavam-se os dias da coleta de lixo. O papel social dessa
rádio é de emocionar!
As peças
publicitárias arrancam rizadas dos ouvintes e do próprio Zaqueu, que cria
vozes, improvisa com um gravadorzinho de mão e assim cativa um público fiel há 4 anos. Felizmente, tivemos a sorte de chegar exatamente na semana
do aniversário da Caiçara FM, e isso fez aumentar ainda mais nosso desejo
de colaborar.
A escola
No dia 19/05, conhecemos a
professora Beth e a coordenadora Érica Duval, após chegarem em um
barco financiado pela prefeitura. A Escola Municipal Martim de Sá oferece o Ensino Fundamental em classes multisseriadas; o turno matutino
recebe alunos do 3º ao 5º ano e, no vespertino, crianças do 1º e 2 º anos da alfabetização. O espaço físico conta com 01 sala de
aula, 01 pequena biblioteca, 01 sala auxiliar com TV e DVD, refeitório
e o espaço externo é o próprio centro da vila e a praia. Ao que
tudo indica, é um lugar onde as crianças ainda podem ser
livres.
Os estudantes aguardavam
tranquilos a chegada da professora. No dia anterior, não houve aula -
fato noticiado na Rádio Caiçara, inclusive. A coordenadora foi bastante solícita e nos
disse que vem uma vez por semana (nos outros dias
acompanha outras três escolas da costa). Ela ainda não sabia muito sobre o
que era nosso projeto, o que não chegou a ser um problema, visto que a
comunicação no Sono, em muitos aspectos, é difícil.
Há trinta e um alunos
matriculados sob a responsabilidade da prefeitura. No turno noturno, funciona
o Projeto Azul Marinho, que oferece complemento do ensino fundamental, 6º ao 9º ano, com duração de dois anos. Trata-se de uma
parceria entre a Rede Globo e a Prefeitura de Paraty. Porém, a
formação desse segmento não é certificada e não se sabe da continuidade da
formação no Ensino Fundamental II, após o fim do projeto. No Sono não
é oferecida nenhuma modalidade de ensino que atenda aos jovens e
adultos, nem ensino médio - o que leva muitas pessoas a abandonar os estudos ou emigrar para Paraty.
Embora o descaso do poder
público com a educação local, podemos afirmar que a Martim de Sá é reflexo da própria comunidade: é uma das escolas mais
fortes da região porque ao seu redor estão reunidas lideranças articuladas que incentivam a permanência dos alunos na escola, bem como a inserção de projetos como o
nosso e a melhoria da escola. E não para por aí, a escola é o lugar de articulação e reuniões dos moradores e atualmente há uma briga envolvendo o Ministério
Público para regulamentar o Fundamental II e implantar o
Ensino Médio.
Apesar de seu território
circunscrevê-la como escola do campo, e de ser frequentada por Caiçaras, o
Estado não oferece políticas suficientes para atender a uma instituição
de tal natureza. Ainda não possui Projeto Político
Pedagógico próprio, mas o corpo docente e os agentes sociais
estão empenhados na construção de outro modelo de Educação ali.
A fim de fortalecer os saberes
tradicionais, destacam-se as demandas por uma Educação que mantenha
viva a cultura e memória desse povo. Nesse sentido, o fomento de uma estação comunitária,
bem como a propagação dos conhecimentos sobre rádio e o
compartilhamento de saberes construídos desde a perspectiva
das crianças, fortalece a luta pela garantia de direitos
e pode manter viva a memória cultural dos povos tradicionais.
Os aspectos complicadores diagnosticados foram as dificuldades com a alfabetização, as repetidas
faltas das crianças e o pouco interesse dos pais em relação ao colégio. Segundo
a educadora Érica Durval, esses problemas se apresentam diante da pouca
perspectiva de futuro ou da ideia de que para desenvolver as principais atividades
da região, o turismo e a pesca, saberes passados de pai para filho, não há
necessidade de frequentá-la assiduamente.
No fim da tarde, encontramos
a professora trabalhando com os pequenos. Disse-nos de sua antiga vontade
de unir os trabalhos em sala à abrangência da Rádio Caiçara,
mas lhe faltava conhecimentos técnicos. Explicamos que pensávamos criar junto com os alunos a estrutura básica para pequenos programas irem ao ar e
que, a partir disso, pudessem se organizar. Apesar da oficina ter
sido elaborada para crianças a partir de 10 anos, ela nos pediu que os
menores também participassem. Saímos animadas da escola, pensando no início dos
trabalhos.
Primeiro módulo do curso
As crianças nos esperavam em
frente à escola. Entramos na biblioteca e elas nos seguiram um
tanto desconfiadas, daí começamos a montar os equipamentos e a
interagir. Nos apresentamos e, diante de toda a timidez delas, usamos
uma ferramenta poderosa para lidar com crianças: o riso. Falamos sobre
aquecimento vocal e fizemos juntos alguns exercícios. Depois de uns gritos para mostrar a respiração diafragmática (mas que
acabaram feitos no gogó mesmo), demos início à dinâmica de
apresentação no rádio. Como eles estavam demasiado retraídos, fizemos da
apresentação uma breve entrevista com cada um. À medida que íamos
trabalhando, mais as crianças menores se achegavam à porta
para saber o que acontecia. Pouco a pouco os que estavam na sala
foram ficando mais à vontade.
Apresentamos o desafio de leitura
da canção Ode aos Ratos, de Chico Buarque. Foi interessante
observar como todos estavam concentrados treinando a dicção dos "erres".
Aliás, todo mundo quis ver o texto, mas poucos se arriscam a ler em voz alta. Então,
com o intuito de melhorar a performance oral e estimulá-los a
refletir sobre a locução, elencamos algumas Dicas para falar no
rádio. Em seguida, iniciamos a gravação da decantação (arte
de declamar canções) da música do Chico. Essa experiência
sempre aproxima as crianças das práticas radiofônicas, como por exemplo a
percepção da importância de se fazer silêncio no estúdio e da escuta
crítica daquilo que é produzido, aspectos para os quais chamamos atenção.
Tínhamos ressalvas sobre o
estágio de alfabetização das crianças, a impressão foi de que a maioria sabia ler, mas apresentavam alguma resistência na hora de escrever o nome completo. Ao
fim do encontro, separamos as crianças em grupos com diferentes temáticas para o programete Cultura Caiçara. A ideia era
criar um produto sobre cultura e diversidade com duração de 1
minuto. Como tarefa de casa, sugerimos que pesquisassem
possíveis assuntos sobre os temas que eles mesmos elegeram como importantes: espécies de peixes, cuidados com a água, remédios caseiros e prática
de bordado.
Segundo módulo do curso
Voltamos pela
manhã, montamos os equipamentos e esperamos as crianças. Mas, para nossa
surpresa, apenas três compareceram. Diz-se que essa ausência no
contraturno é muito comum por aqui.
Iniciamos a oficina ainda
afinando o funcionamento dos equipamentos de captação de áudio. Fizemos o
aquecimento de voz, escutamos e identificamos alguns efeitos sonoros e depois
gravamos a decantação de Ode aos ratos como forma de sensibilização
para a performance no rádio.
Alunos da alfabetização, Tainá, do Ponto de Cultura Caiçara, e a professora Beth
Alunos da alfabetização, Tainá, do Ponto de Cultura Caiçara, e a professora Beth
Na hora do recreio da turma de
alfabetização, alguns deles se aproximaram curiosos
e interessados. Pedimos à professora Beth (super engajada em
fazer a diferença) para que participassem um pouco da oficina. A sala
ficou lotada, para nossa alegria! Exibimos o vídeo de Os Trapalhões fazendo uma
rádio novela, a qual adoraram e compreenderam o humor.
Hora da gravação, tudo o
que tínhamos combinado no dia anterior deu errado. Ninguém levou a pesquisa, até
porque apenas 3 alunos desse dia participaram deste encontro \O/ \0/ E
agora? O que gravar com elas?
Como as meninas do Ponto de
Cultura Caiçara, Julia Grillo e e Taina Mie, estavam lá acompanhadas da
professora, as 3 começaram a sugerir ações. Assim nasceu a ideia de aproveitar as
produções textuais já realizadas pelos alunos para a gravação do
programete.
Gravamos vinhetas, dicas de meio
ambiente, curiosidades, paródias e poemas criados pelas crianças. Assim nasceu o Cultura Caiçara: sabores, sabores e tradição do nosso povo.
3º Módulo do curso
Este foi mais um dia tentando encontrar
o Zaqueu para gravar algumas peças sonoras para a Caiçara FM , porém esteve muito
ocupado com os preparativos do aniversário da rádio. É inspiradora sua força e
sua proatividade.
Fomos à escola pela manhã gravar
com as crianças que faltaram no primeiro dia da oficina, desejávamos recolher um
pouco mais de material. Na biblioteca, Júlia e Taina, do Ponto de
Cultura Caiçara, faziam reunião com alguns moradores, os quais são seus
articuladores culturais em formação. Uma jovem com um bebê recém-nascido questionava as
mudanças na praia e as necessidade de preservação de alguns hábitos antigos,
como o direito de aprender a nadar na barra.
Enquanto arrumávamos os
equipamentos, Julia Grillo nos avisou que as crianças não queriam gravar, pois
estavam muito tímidas. Sugerimos realizar apenas uma
dinâmica de escuta, sem obrigação de registro.
Com muito custo, os poucos presentes na escola entraram na sala. Fizemos a escuta de alguns efeitos sonoros e brincamos de identificá-los. Depois, escutamos a gravação das vozes dos alunos feita na oficina passada e, por último, a composição delas nas vinhetas. Isso mudou o clima da aula, o que animou a turma para mais gravação.
Finalizado o encontro, iniciamos
a gravação com o Tiago, um jovem artista plástico engajado na
implantação do Ponto de Cultura na Praia do Sono e que emprestou sua voz
para a abertura do Cultura Caiçara.
Foi uma surpresa boa! Conseguimos
dar um passo rumo à inserção de várias vozes, diga-se, dos próprios Caiçaras na
programação da rádio deles. Aliás, isso também era uma demanda do Zaqueu. Alegria à parte
foi encontrar o aluno João todo contente por ter escutado sua
voz ser veiculada na vinheta da rádio pela manhã. Seus familiares
também ficaram bem orgulhosos, o que nos fez acreditar ainda mais no
poder aglutinador do rádio.
O aniversário da Rádio
Às 6 da manhã já estávamos
na casa do Zaqueu para testar o volume das vinhetas numa veiculação ao
vivo. Ele gostou do resultado e já soltou o novo
material naquele instante e durante as comemorações do aniversário, à beira mar.
Zaqueu no aniversário de 4 anos da rádio Caiçara FM
Foi emocionante ver toda a
comunidade unida em torno da Rádio Caiçara. As mulheres empenhadas na feitura do
estrogonofe de frango e do bolo, enquanto a TV Futura registrava, no
centro da vila, Zaqueu com uma mesa e uma caixa de som ao
vivo pra festa. Pessoas de localidades vizinhas chegaram de
barco, todos comeram e compartilharam aquele momento de felicidade pelos 4
anos de aniversário.
À tarde, gravamos mais
poemas do Almir, o poeta do Sono. Uma figura muito simpática que acumula
as habilidades de agricultor, massoterapeuta, capelão e que em breve começará
o curso de Pedagogia do Campo.
Ainda rolou um recado do ex-presidente Lula
pros Caiçaras, gravado pelo querido Jad, escutem
só:
Os frutos
A surpresa dessa viagem foi para
ambos os lados. Tínhamos um plano em mãos cujo foco recaía sobre a leitura literária, mas chegando lá tivemos que
adaptá-lo às demandas daquela realidade: reduzir o curso, trabalhar
com diferentes faixas etárias, tentar conciliar a agenda apartetada do Zaqueu
com nossas aspirações radiofônicas. Além do trabalho duro
e apaixonado de criação e edição de áudio, ainda que falho.
Na mesma direção, Jad fez questão
de enfatizar o quanto nossa ação era importante para o fortalecimento
da rádio e da comunidade. Esse fato nos fez acreditar ainda mais que
veicular as vozes dos próprios moradores do Sono, sobretudo dos poetas, pode fortalecer
ainda mais a sensação de pertencimento àquele lugar, e de
carinho pela Caiçara FM. Trabalhamos com muita
alegria e esperamos que as pessoas se apropriem dela dia a dia e
deem continuidade ao Cultura Caiçara, ou criem outros programas,
afinal a Caiçara FM é um patrimônio cultura da Praia do Sono.
Seguem os frutos:
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