quarta-feira, 7 de maio de 2014

Economia criativa do golpe

No mês passado, o Prof. Dr. Orlando Lopes estreou no quadro 5 Minutos como comentarista de Economia criativa. A partir da palavra poética Golpe, ele criou um microensaio intitulado Economia criativa do golpe, que pode ser conferido logo abaixo. Caso você curta essa ideia, fique ligado no Vice Verso de hoje porque teremos mais 5 Minutos com ele. 

Prof. Dr. Orlando Lopes
A ECONOMIA CRIATIVA DO GOLPE
Nós tendemos hoje a pensar na Ditadura e no Golpe recuando até 50 anos, essa é a nossa perspectiva da coisa toda. Mas é bom sempre lembrar que o Golpe é produzido, é gerado por eventos, fatos que vão acontecendo antes, cinquenta anos, cem, duzentos. As ditaduras da América Latina, OS golpes, emergem num contexto que acumula muito diretamente a Guerra Fria, o Desenvolvimentismo, o Imperialismo e, claro, o Nacionalismo.
Se a gente tentar discutir o Golpe com o viés da economia criativa, pensando que isso é um exercício, um ensaio para tentar compreender de forma ampla esse fato da nossa história, a primeira coisa a fazer provavelmente será distanciar o olhar sobre as pessoas (que é uma coisa muito sensível hoje, particularmente neste ano, nestes cinquenta anos), e retomar aquele pensamento de que as guerras, e os golpes, são sempre movidos em direção à grana e ao poder político, que em algum momento se transforma na capacidade de produção da sociedade. Não foram somente as pessoas que foram violentadas, e nem a violência aconteceu no nível da agressão física.  Grupos, comportamentos,  instituições, valores foram sufocados e reprimidos.
Aliás, se a gente começa a colocar o Golpe em perspectiva histórica pra poder começar a discutir quais são as relações econômicas envolvidas, despersonalizando até onde for possível, o que é que aparece? A história frequentemente registra os golpes, o que evidencia a fragilidade dos sistemas de governo, ao mesmo tempo em que evidencia uma flutuação, uma disputa por grupos que vão emergindo. Acho que todo mundo que leu um pouco sobre dialética consegue perceber as sucessões, tantas vezes violentes, na disputa pelo poder. Nós é que somos as primeiras gerações que não consideram um Golpe uma coisa mais ou menos natural, um ritual que em algum momento pode fazer parte da vida.
Essa questão vai longe, mas voltemos para o viés econômico: guerras e golpes pretendem o controle das sociedades pelo controle de dispositivos políticos. No caso brasileiro, o militarismo do golpe sinaliza sempre uma relação com o projeto nacional. Tem a Segunda Guerra, tem a Guerra Fria, americanos e coisa e tal, mas o que cria a condição para tudo acontecer é o discurso do Nacionalismo. Esse é o argumento para unificar o País e a sociedade desde sua fundação, o argumento para organizar es estruturar a sociedade e prepará-la para seus necessários desafios históricos.
E aí vejam vocês que coisa curiosa: todo esse poder que se busca dominar quando se pretende dominar o País vem de onde, emana de onde? Dos bons e velhos símbolos nacionais. Símbolos, convenções que tentam sintetizar, resumir quem nós somos, para nós mesmos. As manifestações e as ondas de choque mais turbulentas estimuladas por outros eventos históricos, a onda das primaveras que afetou a nossa história e alimentou como referência os movimentos que estamos tendo no Brasil -- e que, lembremos, em algum momento cruzam o espírito nacional e as novas formas de mobilização e organização para o protesto… ou de um novo, o próximo, golpe.
(Aqui preciso fazer parênteses… Por mais que se tenha sempre que dizer que de boas intenções o inferno está cheio (e más, ninguém disse que não!), e que não dá pra ignorar como os militares ajudaram a criar uma cultura de violência, essa violência se acumulou e começou agora a produzir bolhas maiores e deslocadas dos pontos de origens demarcados no zoneamento da sociedade, em termos históricos e econômicos deve-se tentar entendê-los também como participantes da construção do projeto nacional, ou de um projeto nacional.)
Bom, o Nacionalismo, os símbolos nacionais que formam a base imaginária e ideológica da Ditadura como um todo, são produzidos e mobilizados a um custo, que vai desde a produção das campanhas publicitárias dos governos até o custeio de uma Constituinte e, não pensemos que é pouco, a criação de obras literárias como Iracema, no Romantismo e Macunaíma, no Modernismo. E isso pode nos levar a pensar: Qual, então, terá sido o efeito, o “custo” do Golpe sobre a capacidade de produção simbólica do País. É certo que precisamos destacar os efeitos negativos, pois assim como fez fisicamente com as pessoas, a Ditadura sufocou, sequestrou, assediou… a Cultura. Exatamente aquilo que faz o Brasil ser… O Brasil.
Mas, por um outro lado, lembremos aquela história: Golpes fazem parte das civilizações. Podem me chamar de fatalista, de realista… Golpes fazem parte, e é bom a gente aprender a perceber que eles estão “por aí”. E do mesmo modo, a Cultura, a Arte, não se faz somente como uma celebração de alegrias. A vida tem dores, e as dores produzem as suas belezas, algumas se tornam inestimáveis (estava aqui pensando em Guernica, do Picasso). Aliás, falando em espanhois, lembrei também do Carlos Saura, no cinema, que elaborou uma linguagem velada, alegórica… São famosas as histórias de como os artistas se tornavam muitas vezes engenhosos em cifrar mensagens em suas obras, de uma forma que a censura só conseguia perceber quando havia circulação pública. Por isso, é bom lembrar que, pensando somente no que significa para o nosso sistema cultural, o fato de a Ditadura ter pressionado, tensionado, adensado de alguma forma promoveu a sofisticação de estratégias expressivas e formas de codificação e decodificação, que vão das páginas de jornal aos códigos dos militantes e simpatizantes, e até aos guetos que, cada vez mais marcados, foram criando formas de expressão específicas em comunidades e grupos.
Voltando ao Golpe, uma das coisas complicadas pra nós é entender qual é, mais uma vez a partir da nossa perspectiva histórica, a forma de se contrapor “ao que vem por aí”. Haverá uma revolução num futuro próximo? Temos, ou estamos chegando a algum novo projeto revolucionário? As “novas” formas (novas pra nós) de produzir e distribuir riqueza mudam de alguma forma as alternativas para as próximas revoluções. São questões, são questões. A dificuldade talvez seja dizer o que é que é mesmo revolucionário no Brasil, já que por aqui tudo é sempre novidade, já-sendo ruína.
Se o próximo Golpe vier, de onde virá? Da situação, da oposição, dos incas venusianos. Não dá pra antecipar o futuro. O que vamos precisar é de sensibilidade para perceber argumentos razoáveis sobre como reorganizar e reestruturar a sociedade, coisa que só pode acontecer “de verdade” se houver a compreensão de que a transformação da sociedade (e da história) começa com a transformação - a revolução - do imaginário, da forma como somos capazes de imaginar o futuro, a sociedade, a economia, não para “jogar conversa fora” mas para reconstruir visões de mundo e uma crítica de como o poder é ocupado, exatamente durante e após os golpes. É isso.

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