Leia o comentário de Moisés ao pé da letra:
Meu comentário desta semana é sobre cenografia e cenário. Para que a conversa se encaminhe de forma prazerosa e até mesmo didática, usarei como exemplo as últimas peças encenadas em nossa cidade pelos grupos Trama – BH (com a peça John & Joe), Ponto de Partida – Barbacena (com as peças Ciganos e Os Gnomos contam a história do Gato Malhado e a Andorinha Sinhá), Grupo Z de teatro (com a peça Dom Casmurro) e Repertório (com a peça Bernarda por detrás das paredes) – ambos daqui do Estado.
É interessante olhar para esses exemplos, pois através deles – montagens contemporâneas, do século XXI inclusive – vamos passear pela cenografia ao longo da tradição teatral, mais especificamente, século XIX e XX.
Para início de conversa, é preciso separar cenário e cenografia. De todos os exemplos acima, o único que possui um cenário fixo e demarcado (e até bastante naturalista) é a peça John & Joe, do grupo Trama. Nela, o bar (ambiente onde a trama se desenvolve) está muito bem representado para o espectador: um balcão com garrafas, copos e um garçom marcam o centro e o fundo do palco; duas mesas, cada uma com duas cadeiras, marcam a frente; o banheiro a esquerda do palco, três degraus com um quadro para os “risquinhos” ao lado do balcão e um jukebox antigo que toca um jazz delicioso – aliado ao cheiro forte de vinho derramado que espraia por todo o espaço – simulam a ambiência botequim.
O cenário em si, portanto, é aquilo que no palco figura a moldura da ação através de elementos pictóricos, plásticos e arquitetônicos. Tudo aquilo que integra a concepção, a decoração e ornamentação do espetáculo no palco se enquadram nessa palavra, e apenas o grupo Trama, a meu ver, tem uma ambientação naturalista, arquitetada sob a ótica teatral no palco, que se encaixa nisso que denominamos cenário. Contudo, em todos eles, a cenografia se faz presente.
(poder-se-ia dizer que Dom Casmurro, do grupo Z, trabalha com cenário fixo; no entanto, parece-me que ali há apenas objetos, sobretudo móveis, fixados no palco que não necessariamente soam naturalistas; não remetem à arquitetura da casa de Bentinho na Rua dos Matacavalos, por exemplo)
Peça Dom Casmurro, do grupo Z.
A cenografia é a arte de organizar o espaço teatral, seja ele um palco ou não. Ela é, “metonimicamente”, conforme as palavras de Patrice Pavis, o próprio desejo, o resultado do pensamento do cenógrafo. Ela é parte do espetáculo tanto quanto a direção, a encenação e a escrita.
Até quase o final do Século XIX, reinou na dramaturgia o pensamento de que o cenário precisava materializar e ilustrar as coordenadas espaciais da forma mais fidedigna ao texto: era necessário que o cenógrafo fornecesse todos os meios para que o espectador visualizasse tudo no palco da forma mais natural, neutra e universal possível. Só para citar um pequeno exemplo, Martins Pena, teatrólogo e crítico teatral, em suas críticas nos Folhetins, chama a atenção de um ator porque este cumprimenta o público entre um aplauso e outro, afirmando que isso tira a naturalidade que o teatro precisa passar para o espectador. [não custa lembrar que naquele século a ideia da “quarta parede” – espécie de barreira imaginária entre ator e espectadores, que permitia aqueles encenarem sem sequer notar quem estava na plateia – vigorava com muita força e era constantemente exigida dos diretores e atores]
No século XX, todavia, esse pensamento foi modificado através da busca de uma cenografia que não mais funcionasse como uma ilustração ideal, sinônima do texto teatral, mas como “dispositivo próprio para esclarecer o texto e a ação humana, para figurar uma situação de enunciação”, colocando-se entre o palco e a escrita, entre o espaço e o texto. Aqui, as coisas não mais são pensadas em duas dimensões, mas em três, uma relação tridimensional, de interdependência dos diferentes materiais cênicos, em que a cenografia atuaria exatamente no meio, como intercâmbio entre a encenação e o texto dramático.
Os espetáculos dos grupos Ponto de Partida e Repertório não possuem um cenário fixo, por exemplo. Quem conferiu a passagem do grupo de Barbacena no Teatro Carlos Gomes no início do mês, e quem já assistiu Bernarda por detrás das paredes lá no Espaço Coletivo pode notar isso.
No caso do Ponto, a não utilização é um projeto estético. Regina Bertola, diretora do grupo, afirma que o naturalismo é algo para o cinema e a televisão, que de fato necessitam que as coisas e objetos tenham lugares e posições precisamente delineados no espaço. Já o teatro precisa evocar, sugerir, fazer com que o espectador visualize esses espaços e objetos sem necessariamente ter um exemplo empírico no palco. E isso pode ser visto nos espetáculos Ciganos e Os Gnomos contam a história do Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, onde se percebe que a não utilização de cenário fixo permite não só a mobilidade cenográfica, com os cenários (visíveis ou não) entrando e saindo do palco, mas também uma concentração maior no ator. É dele que o cenário brota, e não o contrário. E há sempre um fio que costura todo o espetáculo, dando liga à história: no caso do primeiro, as sombrinhas; na peça infantil, os coqueiros que entram e saem de cena pelas mãos dos atores.
Espetáculo Ciganos e Os Gnomos contam a história do Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, do grupo Ponto de Partida.
Não sei se no grupo Repertório há um projeto estético semelhante ao do grupo de Barbacena. Mas, ao menos em Bernarda, parece-me que as estéticas se aproximam; e a cenografia ali desenvolvida é excelente. Com poucos elementos, uma cadeira e uma espécie de toalha de mesa, e um tablado limpo que quase se aproxima do teatro pobre, a atuação cenográfica está mais atrelada à iluminação: ela é o fio condutor desta peça. O excelente trabalho de luz ali feito encena e dá vida ao espetáculo tanto quanto Nieve, Nicolas e Roberta.
O que importa de tudo isso aqui escrito? Independentemente de o cenário ser naturalista ou não, há a necessidade de pensar a cenografia como atuante no espetáculo. De todos os grupos citados acima, o que foi frágil neste aspecto foi o grupo Z de Teatro, com a peça Dom Casmurro. Um espetáculo excelente, que se destaca no texto – na fragmentação das personagens Bentinho e Capitu (genial a cena que todas as atrizes eram Capitu no mesmo instante, uma perfeita forma de representar a ficcionalidade do Eu) – e no trabalho de alguns atores; todavia, no quesito cenografia/cenário, se perde por utilizar um cenário que é pouco explorado pelos atores ou, o que tendo a acreditar, que nada parece dizer ao espectador.
O trabalho do cenógrafo, portanto, é o de quebrar as barreiras do naturalismo, da mera ornamentação, e construir uma linguagem que encaminhe o espectador à narrativa que no palco se desenvolve, independentemente de se ter no espaço o cenário visível ou não. “John & Joe”, por exemplo, é uma montagem que se vale do naturalismo, que apresenta um cenário semelhante ao que se fazia no século XIX; contudo, a cenografia ali desenvolvida é contemporânea, atuante e envolvente, e dá ao espectador todos os meios e formas de leitura do espetáculo. É disso que se trata.
Moisés Nascimento é graduado e Mestrando em Letras pela UFES. Compositor, músico e professor de literatura. Atualmente é colaborador do Portal Yah! através do blog www.portalyah.com/fragmentosnaribalta
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